A situação é mais um retrato claro do subfinanciamento crônico que a rede filantrópica suporta há anos quando o assunto é assistência pública. E, ao prever remuneração significativamente superior à praticada regularmente para os mesmos procedimentos, o Governo reconhece publicamente a existência do problema.
Outro exemplo característico desta situação ocorreu durante a pandemia, com a remuneração das diárias de UTI para pacientes de Covid. À época, a diária de UTI foi remunerada a R$ 1.600,00, quase três vezes o valor da tabela SUS vigente na ocasião. Desta forma, o Ministério da Saúde reconheceu o cenário de subfinanciamento e, em função disso, os hospitais estão propondo ações judiciais na tentativa de conseguirem o recurso extra necessário para custearem estas unidades de internação com valores mais próximos do que efetivamente custam.
O Ministério da Saúde mantém interlocução produtiva com as instituições filantrópicas, sempre com disposição para ouvir as argumentações e trabalhar em conjunto em busca de soluções. Mas é preciso evoluir mais rápido.
O Congresso Nacional também tem ciência e sensibilização com a gravidade do cenário, tanto que aprovou o Projeto de Lei 1.435/22, de autoria do deputado Antonio Brito, que determina a revisão anual dos valores para a remuneração de serviços prestados ao SUS pelos hospitais filantrópicos. No entanto, é importante lembrar que a legislação foi aprovada, tanto na Câmara quanto no Senado, em 2023 e sancionada pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, em janeiro de 2024. Sendo assim, passa a vigorar somente no exercício orçamentário de 2025. Assim sendo, até lá, a situação financeira dos hospitais continuará dramática.
A lei foi, sem dúvida, um enorme avanço, mas os efeitos práticos só serão sentidos após a sua regulamentação, o que, para o setor filantrópico de saúde, é emergencial. As instituições filantrópicas, através da sua Confederação, procuram manter e alimentar uma interlocução produtiva e contributiva com o Ministério da Saúde, para trabalharmos em conjunto em busca de soluções.
Somente em 2024, serão aproximadamente 5 milhões de internações, 1,7 milhão de cirurgias e mais de 220 milhões de atendimentos ambulatoriais realizados por esses hospitais. Isso sem contar o esforço adicional do projeto de redução das filas. Neste contexto, é evidente a necessidade de recursos emergenciais para mitigar o desequilíbrio econômico na prestação dos serviços que estão sendo prestados ao SUS, já que a legislação só marcará o exercício orçamentário de 2025, quando começaremos a vivenciar um movimento real e inicial na construção do ambiente de sustentabilidade para estas instituições.
Se considerarmos a produção SUS dos hospitais filantrópicos devidamente corrigidos pelo IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo), os hospitais teriam direito a um aporte de valores na ordem de R$ 1 bilhão.
Existe, ainda, a urgência de uma repactuação no relacionamento entre o Governo Federal e a rede filantrópica, sobretudo quando se trata do modelo de remuneração na saúde. A morosidade no andamento desse processo, que abriria os caminhos para a sustentabilidade do SUS, impõe aos estados algumas iniciativas para manterem as instituições em condições de subsistência e de resiliência na prestação dos serviços públicos. Isso, no entanto, não exime a necessidade do apoio da União e do Ministério da Saúde, grande gestor do SUS em nosso país, cuidando e capitaneando a evolução desse potencial sistema para garantir justiça, igualdade, consistência e longevidade.
Com o subfinanciamento não sendo tratado rapidamente, surgem problemas insolúveis. O mais complexo deles é o exorbitante endividamento. Mesmo subfinanciados, os hospitais não perdem de vista a missão de atender e servir ao povo brasileiro, mas para isso, geram empréstimos em torno de R$ 5 bilhões apenas com a garantia dos recebíveis do SUS, o que custa R$ 574 milhões por mês para pagar as parcelas desse empréstimo. Um dinheiro do SUS que acaba sendo empregado no pagamento de juros, em face do endividamento dessas instituições.
A cada mês que passa, porém, sem sequer a conversação sobre a regulamentação da lei nº 14.820 ter iniciado, a angústia aumenta. Essa é uma preocupação que não deve se limitar apenas aos hospitais, as federações que os representam em cada estado e a nós, da CMB. É uma questão que requer a atenção de todos que fazem do SUS a política mais justa e democrática de acesso à saúde por grande parcela da população brasileira.
Diante de todo esse exposto, fica evidente que solucionar rapidamente o subfinanciamento da rede filantrópica é mais do que uma questão econômica. Trata-se de providência fundamental para a promoção do acesso universal à saúde e da justiça social. Esses hospitais desempenham um papel insubstituível na rede de atendimento público e é dever do Estado garantir que eles tenham os recursos necessários para continuar cuidando dos brasileiros, como fazem há quase 500 anos.
Mirocles Véras
Presidente da Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas (CMB)